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Concluinte em Artes Visuais na Universidade do Estado do Rio de Janeiro, meus trabalhos de gravura costumam ser experimentações gráficas em serigrafia, buscando um diálogo entre conceitos gerais de som (como ruído e reverberação), e signos pop. A repetição de uma imagem impressa em cima da outra equivale ao ruído ao desdobrar-se entre distorções e reverberações. Os ruídos desorganizados postos no papel repetidamente a partir da figura da matriz original, sugerem “sons imagéticos”. Parte da série que mostro aqui vem de um desenho em nanquim que fiz da artista Adrianne Lenker, usado como matriz para tela de serigrafia. O desenho é impresso diversas vezes um em cima do outro, até ele virar um acumulado dismórfico, saturado, e reverberando em torno de si. O que sobra como imagem é o ruído da matriz.
A música tem sua linguagem gráfica própria, seja pela partitura, tablatura, ou nas cifras. Cada símbolo significa um tipo de som, que o músico lê e reproduz em seu instrumento como está escrito na pauta musical. A representação visual que a física usa para o movimento de onda sonora dá-se por impulsos e quedas de impulsos, e a forma gráfica disso é pela onda senoidal.
Mas essa representação sozinha não basta. É muito raro encontrarmos ondas unidimensionais e simples, como as que vemos em exemplos de livros de física, na prática. Cada som é um complexo conjunto de sobreposições e frequências ao mesmo tempo, o som real é composto de frequências que se sobrepõe e interferem umas nas outras.
É principalmente a apropriação do vocabulário desses conceitos que uso em meus trabalhos. Não necessariamente me guio por um som e tento traduzi-lo no papel. Na realidade, não aplico diretamente nenhum conceito de som em minhas gravuras, e sim um pouco da maneira de representação das ondas sonoras pelas sobreposições da própria matriz. É uma apropriação de um vocabulário de um contexto (som), aplicado em outro (imagem). A própria palavra “distorção”, por exemplo, pode ser aplicada tanto para o som distorcido, quanto para a imagem distorcida. E a mesma coisa serve para “ruído”. E talvez, consigam ser uma das pontes que sugere essa conversa entre som e imagem, sem necessariamente precisar definir teoricamente o que é o que. O ruído, a distorção, a reverberação, e a cacofonia.
E não deixa de ser uma questão visual interpretativa também. É uma apropriação, não uma tradução, e isso permite muito mais liberdade (seja para o bem ou para o mal).
A gravura é uma linguagem que permite certa facilidade nesse processo de reverberação da matriz pela sua serialidade. Dependendo do método usado, ela permite que o artista/artesão/técnico imprima, de uma mesma matriz, várias séries da mesma coisa. Livros, jornais, panfletos. É possível imprimir aos montes. A serigrafia (ou silkscreen), uma técnica já moderna de gravura, é usada principalmente para estampar peças de roupas (como camisetas e bonés) e também para posters/cartazes. Mas todos esses métodos de gravura seguem à risca suas técnicas e regras, para que a impressão seja o mais fiel possível ao que quer ser feito, e é aqui, também, a parte que ignoro completamente.
É engraçado como a serigrafia permite uma gama enorme de possibilidades artísticas e acabe não usando alguns resultados por considerar um erro. Seria impossível no meu trabalho ignorar, e não aproveitar, tudo o que “dá de errado” em uma impressão. São os ruídos da matriz, os ruídos do gesto de passar a tinta na tela de silk. Até o papel que acaba rasgando quando a tela gruda na folha, é trabalho.
A gravura é uma linguagem metódica. O processo de preparação de uma tela de serigrafia é em fases, que devem ser seguidas quase como religiosamente.
E depois de tudo isso, imprimir.
É claro que uma ou outra parte desse processo muda de pessoa para pessoa, mas no geral (bem geral), é isso. Existe mais uma série de coisas que devem ser feitas na hora de imprimir com a tela de silk. Marcações e mais marcações para não ficar torto e fora do lugar.
São processos dentro de processos, e tento fugir disso quando trabalho com alguma tela. Não é essencial ficar apegada a regras de impressão, as vezes é muito mais interessante trabalhar com o que deu errado.
No geral, gosto de usar como matriz desenhos de mulheres musicistas e pessoas LGBTQIA+, por pura referência pessoal de gosto. Gente babando ovo de Músico Homem Cis™, já-tem-até-demais™.
REFERÊNCIAS
WISNIK, José Miguel. Som, ruído e silêncio: Física e metafísica do som. In: O SOM e o Sentido: Uma outra história das músicas. 3. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1989. cap. 1, p. 17 – 28. ISBN 9788535929690
SCHAFFER, Murray. Limpeza dos ouvidos: Ruído; silêncio; som; timbre; amplitude. In: O OUVIDO pensante. 2. ed. São Paulo: Ed. Unesp, 1992. cap. 2, p. 55 – 65. ISBN 9788539302185
Concluinte em Artes Visuais na Universidade do Estado do Rio de Janeiro, a pesquisa visual de rac quel explora conceitos gerais sobre som, e signos pop misturados em técnicas gráficas de impressão. Além do som, também se interessa pela desconstrução e ressignificação de imagens, a apropriação e o non-sense. Seus trabalhos procuram alcançar uma conversa entre símbolos e ícones. Não usa somente a serigrafia e o estudo do som como expressão, também trabalha com adesivos, colagem digital, vídeo, e outras linguagens da gravura como a xilo e a borracha.